quinta-feira, 8 de julho de 2021

FÉ INABALÁVEL E RAZÃO - O SIGNIFICADO DE RELIGIÃO PARA ALLAN KARDEC



Com esse artigo, iniciaremos SÉRIE ESPECIAL com origem no artigo científico elaborado por Brasil Fernandes de Barros, Mestre e Doutorando em Ciências da Religião pelo Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC MINAS. E-mail: brasil@netinfor.com.br, publicado originalmente na Revista Interações, Belo Horizonte, Brasil, jan./jun. 2019.

Reputamos de importância significativa para os espírita, considerando que o tema ainda divide o movimento espírita.

Para possibilitar melhor comodidade à leitura, as postagens serão em dia sim, dia não.

Boa leitura!

 

  

RESUMO

Mais de 150 anos depois da codificação da doutrina espírita, ainda são frequentes os debates entre os seus fiéis a respeito do aspecto religioso do Espiritismo. A doutrina, codificada por Allan Kardec no século XIX, surgiu em meio a uma profusão de novas teorias e concepções científicas e filosóficas, tendo sido fortemente marcada pelo legado iluminista e pelos pensadores de sua época. O objetivo deste artigo é estabelecer um diálogo entre o conceito de Kardec sobre religião e alguns autores, tais como Benson Saler, Clifford Geertz, dentre outros. Para isto, num primeiro momento, discutiremos as origens do termo “religião” e seu conceito. Procuraremos entender, por meio de pesquisa bibliográfica, o porquê de Kardec ter afirmado que o Espiritismo não era uma religião, bem como investigaremos a sua perspectiva secular. Concluiremos com a maneira pela qual Kardec posicionava o Espiritismo em termos de Religião.

 

1 - INTRODUÇÃO

A partir dos fenômenos de 1848, vivenciados pelas irmãs Fox em Hydesville, nos Estados Unidos1, o Espiritismo tornou-se uma fonte que prometia oferecer respostas para uma série de questões da Ciência, da Filosofia e da Religião. O fenômeno das mesas girantes2 tornou-se uma febre na Europa e servia como diversão nos salões da alta sociedade. Diversos observadores se dedicaram aos experimentos e esperavam obter uma fundamentação científica para tais fenômenos, o que significava, em meados do século XIX, encontrar uma prova irrefutável para a sobrevivência do espírito após a morte. (ARAUJO, 2010, p. 119)

Entre os observadores vamos encontrar Hippolyte Léon Denizard Rivail (1804-1869), eminente pedagogo francês discípulo de Johann Heinrich Pestalozzi (1746-1827), que se tornou muito conhecido por seu pseudônimo de Allan Kardec, nome que adotou quando publicou “O Livro dos Espíritos”, a obra basilar do Espiritismo. Esse livro traz, logo na contracapa, a declaração de que o mesmo se trata de filosofia espiritualista (KARDEC, 2008, p. 3), algo sobre o qual os seus adeptos não têm dúvidas. Apesar disso, porém, hoje a terceira maior religião brasileira (IBGE, 2010), com 3,8 milhões de seguidores, se debate com uma questão de identidade no que tange ao seu aspecto religioso. Um grande número de adeptos tem questionado se o Espiritismo é ou não uma religião, a ponto de existirem movimentos não reconhecidos pelos órgãos unificadores do Espiritismo3, como o chamado espiritismo-científico ou filosófico-científico (CHAVES, 2013). Um dos pontos centrais dessa discussão é decorrente da afirmação de Kardec, que diz que o Espiritismo não é religião:

O Espiritismo é uma doutrina filosófica que tem consequências religiosas, como qualquer filosofia espiritualista; por isso mesmo, vai ter forçosamente as bases fundamentais de todas as religiões: Deus, a alma e a vida futura. Mas não é uma religião constituída, visto que não tem culto, nem rito, nem templos e que, entre seus adeptos, nenhum tomou, nem recebeu, o título de sacerdote ou de sumo sacerdote. (KARDEC, 2016, p. 232).

 

Não obstante Kardec tenha dito que a doutrina espírita não fosse uma religião, ele acreditava, como veremos mais à frente, que a mesma deveria servir como elemento aglutinante às diversas religiões. Mas disse também, anos depois da publicação de “O Livro dos Espíritos”, em seu discurso em reunião pública, na noite de 1° de novembro de 1868, na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, que "O Espiritismo é uma religião, e nós nos vangloriamos por isto.4" (KARDEC, [1868] 5/(2007c), p. 491).

Quando iniciamos as nossas pesquisas sobre o Espiritismo, havia um desejo particular de identificar um “conceito de religião” que pudesse harmonizar-se de forma clara com o Espiritismo e, assim, oferecer um possível “alento” a essa discussão, que por tanto tempo tem se desenvolvido no meio espírita em relação ao seu aspecto religioso. Porém, essa busca confrontou-se logo em seus primeiros passos, a partir da afirmação de Benson Saler:

 

Como indica a literatura acadêmica sobre religião, não há critérios seguros, bem definidos e universalmente aceitos para diferenciar a religião da não-religião. (Alguns acadêmicos, de fato, propuseram rótulos como "quase-religiões" ou "semi-religiões" para indicar que vários fenômenos complexos se assemelham às religiões de alguma forma, mas não o suficiente em seus aspectos para justificar o rótulo indefinido de "religião".) Além disso, algumas religiões apresentam um volume maior de características típicas às quais associamos no nosso modelo geral de religião do que outras, e talvez uma maior elaboração dessas características do que é o caso em outros lugares. Algumas religiões, por assim dizer, são "mais religiosas" do que outras. (SALER, 2000, p. xiv, tradução nossa).6

 

As afirmações de Saler nos levaram a constatações com significados inquietantes; primeiro, não há uma definição clara e universalmente aceita sobre o conceito de religião; segundo, há margens de discussão importantes para o assunto, as quais vislumbram a necessidade de compreender melhor o conceito de religião. Ao afirmar que possam existir religiões que são mais ou menos religiosas do que outras, Saler abre um leque para incluir o Espiritismo como uma religião, e de fato tem sido tratada como tal, conforme já afirmamos anteriormente, devido à maioria dos Espíritas, como demonstra o censo do IBGE de 2010. Apesar disso, existem discussões teológicas entre os seus seguidores que têm dificuldades de assumir essa postura de religião constituída, a partir das definições de Kardec, que não deixam clara a questão.

Com vistas a colaborar com essa discussão, este artigo tem a intenção de oferecer um referencial teórico, metodologicamente distanciado das paixões que envolvem aqueles que se dedicam à discussão do aspecto “religioso” do Espiritismo, de forma a fornecer reflexões a respeito do ambiente histórico em que essa doutrina foi cunhada. Para tentar compreender a questão, pretendemos, portanto, estabelecer um breve diálogo com os pensamentos de Kardec acerca do conceito de religião. É importante frisar, porém, que este diálogo será estabelecido em relação à época e também levando-se em consideração como a cultura7 influenciou o seu pensamento e o de seus contemporâneos. Falamos aqui de cultura, porque foi a partir de um modismo extremamente popular, denominado “as mesas girantes”, que surgiu o Espiritismo (KARDEC, 1987, p. 68).

 

 

1 Embora seja praticamente impossível determinar a data de início da história do Espiritismo, convencionou-se que o ano de 1848 constitui seu ponto de partida. A 31 de março, na casa da família Fox, na aldeia de Hydesville, condado de Wayne, Estado de Nova York, nos Estados Unidos da América do Norte, ruídos insólitos surgiram de maneira ostensiva e uma série de fenômenos chamou a atenção da sociedade da época. Das paredes vinham pancadas ou ruídos que pareciam provir de uma inteligência oculta desejosa de comunicar-se. As irmãs Katherine e Margareth Fox, duas meninas de 11 e 14 anos, que aparentemente eram a causa dos acontecimentos, foram dormir no quarto de seus pais, mas os ruídos aumentaram; a irmã mais nova começou a bater palmas e da parede ouviu-se o mesmo número de batidas. A menina fazia perguntas e a parede respondia com um golpe para dizer “sim” e com dois golpes para dizer “não”. A partir destes eventos, por todos os Estados Unidos, e posteriormente na Europa, espalhou-se a febre das evocações dos chamados espíritos batedores. (DOYLE, apud ARAUJO, 2010, p. 119).

2 Mesas girantes, mesas falantes ou dança das mesas eram um tipo de sessão espírita em que os participantes se sentavam ao redor de uma mesa, colocavam as mãos sobre ela e esperavam que ela se movimentasse. Populares no século XIX, acreditava-se que as mesas serviriam como meio de comunicação com supostos espíritos. Alfabetos também eram colocados sobre as mesas e elas se inclinavam para a letra adequada, soletrando palavras e frases.

3 Como órgãos unificadores do Espiritismo nos referimos ao movimento organizado pelos espíritas a partir da FEB – Federação Espírita Brasileira.

4 Há divergências nas diversas traduções, alguns usaram o verbo “ufanar”, outros, porém o verbo “vangloriar” ou ainda “gloriar”. No original em francês usou-se o vocábulo “glorifions”: Le lien établi par une religion, quel qu'en soit l'objet, est donc un lien essentiellement moral, qui relie les coeurs, qui identifie les pensées, les aspirations, et n'est pas seulement le fait d'engagements matériels qu'on brise à volonté, ou de l'accomplissement de formules qui parlent aux yeux plus qu'à l'esprit. L'effet de ce lien moral est d'établir entre ceux qu'il unit, comme conséquence de la communauté de vues et de sentiments, la fraternité et la solidarité, l'indulgence et la bienveillance mutuelles. C'est en ce sens qu'on dit aussi: la religion de l'amitié, la religion de la famille. S'il en est ainsi, dira-t-on, le Spiritisme est donc une religion? Eh bien, oui! sans doute, Messieurs; dans le sens philosophique, le Spiritisme est une religion, et nous nous en glorifions, parce que c'est la doctrine qui fonde les liens de la fraternité et de la communion de pensées, non pas sur une simple convention, mais sur les bases les plus solides: les lois mêmes de la nature. (KARDEC, 1868, p. 359).

5 As referências relativas à Revista Espírita, geralmente são tomadas pelo ano original de sua publicação, e isto torna-se relevante na medida em que, para o desenvolvimento de nosso trabalho, estamos em alguns momentos analisando o desenvolvimento do pensamento de Kardec, do ponto de vista cronológico. Portanto, doravante, quando se tratar da Revista Espírita editada por Kardec, citaremos o ano original da revista seguido do ano de sua versão atual (2007) publicada pela FEB com a(s) página(s) correspondente(s) na tradução de Evandro Noleto Bezerra, da qual foi tomada por referência. Este comportamento será adotado, inclusive nas referências ao final deste trabalho.

6 As the scholarly literature on religion indicates, there are no sure, sharp, and universally accepted criteria for marking off religion from not-religion. (Some scholars, indeed, have proposed such labels as "quasi-religions" or "semi-religions" to indicate that various complexes of phenomena resemble religions in some ways, but not sufficiently in other respects to justify the unqualified label "religion.") Further, some religions exhibit more of the typicality features that we associate with our general model of religion than do others, and perhaps greater elaboration of these features than is the case elsewhere. Some religions, in a manner of speaking, are "more religious" than others.

 

 

Um comentário:

  1. Caro amigo Jorge, parabenizo pela iniciativa de dispor aos leitores do canteiro discussão tão importante. Independente da conclusão do autor, o qual ainda não foi possível identificar o entendimento pessoal (e talvez nem o declare), julgo que trazer à baila mais um estudo a respeito é de extrema importância. Afinal em Espiritismo uma das mais importantes virtudes é se manter uma conduta crítica e que consegue discutir sobre qualquer tema sem receios de quaisquer naturezas. Roberto Caldas

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