O Livro de Jó, em seus quarenta e dois capítulos,
conta a trajetória de um homem que se fez protótipo da fé e das mais
apreciáveis virtudes. Bem casado e pai de catorze filhos, Jó era correto,
reverente a Deus e caridoso. Em tudo procurava não fazer o mal. Seus muitos
empregados e numerosos rebanhos tornavam-no o mais rico homem daquela região,
mas nem por isso deixava de ser consciencioso e previdente. Se os filhos
banqueteavam, punha-se a orar demoradamente, por saber que o esbanjamento não é
agradável ao Criador e por crer-se apenas um depositário da fortuna. Em termos
kardequianos, Jó seria “um homem de bem”*.
Para Deus, aquele patriarca era raro exemplar da
virtude planetária. Mas para o Espírito Satânico, que hoje sabemos ser a
reunião dos maus espíritos, era alguém a ser derrotado com astúcia e
perversidade. Então Satanás obteve do Criador a licença (livre-arbítrio?) para
despojá-lo de todos os bens, empregados e até mesmo dos filhos, o que se
concretizou em poucos dias. Jó recebeu
as trágicas notícias sem a mais mínima revolta, procurando, antes, fazer da
perda um degrau para ascender em virtude. Rasgou a própria roupa, reconhecendo
que viera ao mundo “sem nada”, pelou a cabeça, ajoelhou-se no chão e exaltou o
nome de Deus.
Através de nova licença, o Espírito das Trevas conseguiu
cobri-lo de feridas, sob o argumento de “provar” que sua lealdade era
interesseira. Agora pobre e doente, o israelita sentou-se sobre um monte de
cinzas e tomou de um caco para coçar suas feridas. Então sua mulher, a única
sobrevivente da família, pediu-lhe que amaldiçoasse a Deus e “morresse” (evidente
apelo ao suicídio). No entanto, tratava-se de alguém realmente sereno e
inquebrantável.
̶ Não seja
insensata, mulher? Se recebemos de Deus
tudo quanto é bom, por que não iríamos receber o que é ruim?
As palavras de Jó à esposa não foram exatamente
estas, mas equivalentes. E assim ele não fraquejou, apesar de muito sofrer. Para
quem crê, a Providência não tarda. Foi assim que três amigos – Elifaz, Bildade
e Jofar – vieram visitá-lo, em franco sinal de lealdade e compreensão.
Desfigurado que estava, os três quase não o reconheceram. Os sete primeiros
dias da visita transcorrem em completo silêncio dos visitantes, pois viam que a
dor de Jó era muito grande. Provavelmente, levaram esse tempo a escutá-lo,
talvez orando em silencio e prestando-lhe algum auxílio: é assim que age a
amizade sincera, prestativa e sábia.
Passado esse tempo, é Jó quem quebra o silêncio e
começa uma série de lamentos, revelando que a depressão chegara e tomara conta
da alma de alguém que personifica a própria fé, em todas as épocas.
-Maldito o dia em que nasci (...) Por que não morri
ao nascer? Porque minha mãe me segurou no colo e me amamentou (...)Por que
deixar que vivam os que têm o coração amargurado? (...) Em vez de comer eu
choro e meus gemidos se derramam como água.
Toda lamentação sensibiliza, mas a de um homem
íntegro comove mais:
-Eu prefiro ser estrangulado. É melhor morrer do que viver
neste meu corpo. Detesto a vida. Não quero mais viver.
Explica-nos a Doutrina Espírita que querer a morte e
deixar-se morrer aos poucos, autoabandonando-se, é uma forma de suicídio
indireto, da mesma forma que queixar-se da vida é uma forma indireta de
blasfemar contra Deus, o criador e doador dessa mesma vida. Mas há momentos que
até mesmo um homem como aquele chega à beira do abismo, talvez para deixar
claro o quanto é frágil o ser humano e o quanto ele depende da “força” que lhe
deu origem.
Quando a dor parece ter chegado ao ápice, Bildade, um
dos três amigos, começa a exortá-lo de forma segura e tranquila. Sucedem novos
lamentos de Jó, em seguida quem fala é Zofar, Jó responde, Elifaz dialoga... Cada
qual argumenta como crê alcançar melhor o convencimento... E assim o diálogo
amigo vai elucidando, a dor daquele patriarca vai amainando. Entre a luz e a
sombra, ele torna a reconhecer que todas as vicissitudes são justas (em seu
caso, provas) e suplica, com a humildade de uma criança:
-Ah! Se eu pudesse voltar meses atrás, para os dias
em que Deus me protegia.
Mas fraqueja ainda:
-Ó Deus, eu clamo pedindo tua ajuda e não me
respondes.
E lembra-se de virtudes suas, que realmente as
tinha, mas que acaba deslustrando, pois as cita na sua defesa diante do
Criador.
São longos e um tanto repetitivos os diálogos, como
as falas de qualquer pessoa depressiva. Quando Jó alcança clareza de ideias e
torna à compreensão que lhe era apanágio, habilita-se a escutar a “voz de Deus”
(que numa compreensão mais ampla é a voz de um Espírito superior, em nome de
Deus, ou ainda a “voz da consciência”, onde está escrita a lei de Deus**).
Segundo o texto, o próprio Criador o exorta com firmeza, pois mesmo em se
tratando de exemplar homem, ela ainda fraqueja. Mas o Pai termina por
reconhecer sua fidelidade, suas virtudes.
O início, como o final desta história, são
conhecidos de muita gente, tanto pelo fato de ter um final feliz, quanto por
ser o que realmente interessa: “Jó era um
homem sinceramente ligado a Deus. Rico e feliz, perdeu tudo, até mesmo a saúde.
Mas tendo-se mantido leal à fé, o Criador fez com que tudo lhe fosse
restituído. Casou novamente, recuperou bens, teve uma longa e feliz sobrevida.”
O que pouco se fala, quando vem à tona esta narrativa,
é quanto ao aspecto da depressão. Há compreensíveis razões para isso. Quem é
que não salta um capítulo chocante e doloroso de qualquer história? Penso que pequena
minoria. “Pula essa parte!”, é o que todos preferem. Depois, temos o fato de
tratar-se de um livro milenário, escrito quando a humanidade nem sonhava com o
termo “depressão”.
Bem! Sou tentado a me estender sobre cada etapa do
processo: A primeira onda de eventos traumáticos; novas rebordosas
traumatizantes; o fraquejar da esposa e o conselho para negar a Deus e
suicidar-se; a tentativa de manter-se firme, a todo custo; os primeiros
sintomas da crise depressiva; o momento em que a fé fraqueja; a chegada dos
amigos, verdadeiros enviados de Deus; o sábio silêncio destes; a fala
descuidada, embora bem intencionada, daqueles que não sabem oferecer o
silêncio, a escuta e o amparo, e saem a “pregar” conselhos ao paciente; o
lamento longo e cansativo do paciente; o demorado percurso que o paciente vai
fazendo, até refazer suas estruturas emocionais; as evoluções e involuções da
doença; o risco de pôr tudo a perder, quando maldiz o ter nascido e quando
deseja a morte, mesmo que não seja predisposto a autoaniquilar-se; a
recuperação da capacidade de sonhar, mesmo que fugidia; os estágios entre luz e
sombra, entre levantar-se e cair de novo; até o momento, sonhado por todos os
participantes do processo (paciente, terapeuta, família, amigos...) em que o
depressivo reconhece a sabedoria divina, dialoga com ela e refaz sua vida em
outras bases... Sem esquecer a influência das trevas, que perpassa o processo
(obsessão).
Bem! Deixarei esses temas a cargo do atento leitor,
para que ele reflita sobre cada uma das etapas. Quem sabe a anamnese de Jó,
reinterpretada por quem passa pelo guante da depressão, não venha a servir aos
estudos de profissionais da área? Se não, contenta-me o saber que possa servir
a pelo menos uma pessoa sofredora ou interessada no assunto. E caso não haja
esta, edifica-me saber que me faço melhor, refletindo e comunicando esta
abordagem sobre tão respeitado personagem bíblico e sobre tão torturante
problema.
Referências
bibliográficas:
(*) O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. XVI: 14 e 15;
(**) O Livro dos
Espíritos, questão 621.
Parabéns. Muito obrigada!
ResponderExcluirMaravilhosos comentários.
ResponderExcluirA pintura. O quadro.Que trabalho de pesquisa
ResponderExcluirMuito obrigada ...Suas considerações me fez refletir a luz da doutrina...Deus inspire sempre..
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