Pular para o conteúdo principal

DESENCARNAÇÃO E DESPRENDIMENTO



Por Sérgio Aleixo (*)



Morte é para o corpo; desencarnação, para o espírito. Essas palavras, contudo, equivalem-se. Por isso se diz que fulano desencarnou, em vez de se dizer que morreu. Espíritas, somos cientes de que a separação entre alma e corpo raramente é instantânea, donde passarmos, às vezes, dessa equivalência a uma diferença artificial e, pior, nada técnica entre morte e desencarnação, quando existe, na verdade, entre desencarnação e desprendimento. Kardec utilizou o substantivo désincarnation apenas duas vezes, por mais que os tradutores o tenham feito aparecer, e a formas do verbo désincarner, onde nunca estiveram. Em O Livro dos Espíritos, por exemplo, nenhuma ocorrência há do substantivo desencarnação, do verbo desencarnar, em qualquer de suas formas, nem mesmo do particípio ou adjetivo desencarnado (désincarné). Kardec se refere, ali, ao encarnado (incarné), reencarnado (reincarné) e não encarnado ou errante (non incarné ou errant), i. é, liberto, desprendido ou desembaraçado do corpo (dégagé du corps). Os tradutores febianos é que sempre ousam mais. E até essas ousadias indicam equivalência e não diferença entre morte e desencarnação.[1] Kardec chegou a usar, sim, o particípio ou adjetivo desencarnado, o substantivo désincarnation, mas nunca o verbo desencarnar e suas formas, o que coube, antes, aos espíritos Viennois (désincarnent), Lamennais (désincarne) e Clélie Duplantier (désincarnant).[2] Eis os dois únicos empregos substantivos do mestre, na obra O Céu e o Inferno e na Revista Espírita:

“Cada globo tem, de alguma sorte, sua população própria de espíritos encarnados e desencarnados, alimentada em sua maioria pela encarnação e desencarnação dos mesmos [espíritos]. Esta população é mais estável nos mundos inferiores, pelo apego deles à matéria, e mais flutuante nos superiores”.[3]

“Tal é a alma durante a vida e depois da morte. Para ela há, portanto, dois estados: o de encarnação ou de constrangimento, e o de desencarnação ou de liberdade; em outras palavras: o da vida corporal e o da vida espiritual”.[4]


No primeiro contexto, desencarnação opõe-se a encarnação, justamente como morte a nascimento; no segundo, é o estado de liberdade, de vida espiritual. Ora, désincarnation surgiu primeiramente numa correspondência publicada na Revista Espírita de setembro de 1863. No texto do missivista, lê-se: “désincarnation ou mort corporelle”, sinonímia que não mereceu de Kardec nenhum reparo.[5] As duas ocorrências substantivas restantes pertencem aos espíritos Demeure e Clélie Duplantier; em ambas, permanece o paralelismo com a palavra morte.

“[...] quanto mais cedo se der a sua desencarnação, mais cedo poderá se dar também a reencarnação que lhe permitirá acabar a sua obra [...].”[6]

“Em geral, sendo a população mauriciana inferior, do ponto de vista moral, a desencarnação não pode fazer do espaço senão um viveiro de espíritos muito pouco desmaterializados, ainda marcados por todos os seus hábitos terrenos, e que continuam, não obstante espíritos, a viver como se fossem homens.”[7]

Quando, por outra, os espíritos e Kardec trataram da intimidade do processo quase sempre gradual da separação entre alma e corpo, ou seja, no suceder mesmo da morte e do pós-morte, não o fizeram sob os signos da palavra désincarnation, e sim do vocábulo dégagement: desprendimento.[8] E não sem motivos. O princípio espírita é que “a vida orgânica pode animar um corpo sem alma, mas a alma não pode habitar um corpo sem vida orgânica”.[9] Ora, após a morte, por mais demorado que o seja, o desprendimento “não implica”, segundo o mestre, “a existência no corpo de nenhuma vitalidade, nem a possibilidade de retorno à vida, mas a simples persistência de uma afinidade entre o corpo e o espírito, afinidade que está sempre na razão da preponderância que, durante a vida, o espírito deu à matéria.”[10] O estado de encarnação, assim, pressupõe vitalidade corporal; a ausência desta caracteriza, por sua vez, o de desencarnação. O cadáver não pode estar mais ou menos morto; na mesma proporção, a alma não estará mais ou menos desencarnada (désincarné), e sim mais ou menos livre, desprendida, desembaraçada (dégagé), conceito bem distinto.
Ao ocorrer a cessação da atividade do princípio vital, o corpo não mais retém a alma, embora esta, não raro, é que insista em identificar-se à matéria inerte. Com a morte, não há mais, no corpo, nenhuma vitalidade, todavia pode existir, entre alma e corpo, alguma ou muita afinidade, o que gera pontos de contato entre o cadáver e o perispírito. Entretidas que eram essas ligações fluídicas apenas pela atividade do princípio vital, passam a ser mantidas por uma força de aderência que, agora só devida ao espírito, o retém identificado ao corpo, e não mais encarnado nele.[11] Esses laços fluídicos podem gerar uma espécie de repercussão moral que transmite ao espírito a sensação do que se passa no corpo, muito embora, incontinenti, Kardec esclareça que repercussão não é o melhor termo, por dar a ideia de um efeito muito material àquilo que, antes, está mais para uma ilusão que o espírito toma como realidade. Ora, neste, as sensações não dependem mais de órgãos sensitivos; são gerais e não mais se devem a agentes exteriores.[12]

Portanto, a desencarnação só se opera com a morte; o desprendimento, já durante a vida. A primeira depende da morte do corpo; o segundo, da elevação da alma. Durante a encarnação, é a vitalidade do corpo que prende a alma; depois da morte, é a afinidade da alma com a matéria que a identifica com o cadáver. Desse modo, morte equivale, sim, a desencarnação e antes difere, mais propriamente, de desprendimento. Morto o corpo, o espírito está desencarnado, sem estar, porém, necessariamente desprendido.

[1] Vejam-se estes oito exemplos: O Livro dos Espíritos, (1) nota ao n. 188: “Une personne décédée”; i. é: “Uma pessoa falecida”. Guillon Ribeiro: “um espírito que desencarnara”; Evandro Noleto Bezerra: “um espírito que havia desencarnado”. Herculano Pires: “Uma pessoa falecida”. (2) n. 257: “pendant les premiers instants, l'Esprit”; i. é: “durante os primeiros instantes, o espírito”. G. R.: “durante os primeiros minutos depois da desencarnação, o espírito”. E. N. B.: “Durante os primeiros instantes, o espírito”. H. P.: “Nos primeiros instantes, o espírito”. (3) n. 339: “sortie du corps”; i. é: “saída do corpo”. G. R. e E. N. B.: “ao desencarnar”; H. P.: “desencarnação”. (4) n. 399: “l'état d'Esprit” e “l'état d'incarnation”; i. é: “o estado de espírito” e “o estado de encarnação”. G. R. e E. N. B.: “quando desencarnado” e “quando encarnado”. H. P.: “no estado de espírito” e “no estado de encarnado”. (5) n. 402: “à leur mort”; i. é: “na sua morte”. G. R.: “desencarnando”; E. N. B.: “ao desencarnarem”. H. P.: “ao morrerem”. (6) n. 1014-a: “Esprits errants, ou nouvellement dégagés”; i. é: “espíritos errantes, ou recentemente libertos”. G. R. e E. N. B.: “recém-desencarnados”; H. P.: “recentemente libertados”. (7) O Céu e o Inferno, parte II, cap. II: Sr. Sanson, numa nota Kardec escreve: “mais en raison de la mort récente de M. Sanson”, i. é: “mas em razão da morte recente do Sr. Sanson”. Manuel J. Quintão: “visto que o Sr. Sanson desencarnara recentemente”; H. P.: “mas em virtude da morte recente do Sr. Sanson”. (8) O Céu e o Inferno, parte II, cap. II: O Doutor Demeure, a certa altura escreve Kardec: “lendemain de sa mort”; i. é: “no dia seguinte ao de sua morte”. M. J. Q.: “da sua desencarnação”; H. P.: “da sua morte”, etc., etc.
[2] F.E.B., mai/1863, p. 222; out/1863, p. 429; abr/1869, p. 121.
[3] O Céu e o Inferno. Parte I, cap. III, n. 17. F.E.B., 2003, 51.ª ed., p. 37. Meu, o acréscimo da palavra “espíritos” entre colchetes. No original francês: “mêmes Esprits”.
[4] Revista Espírita. Jan/1866. A Jovem Cataléptica da Suábia. Estudo Psicológico. F.E.B., 2007, 2.ª ed., p. 41.
[5] Questões e Problemas. Sobre a expiação e a prova. F.E.B., 2007, 3.ª ed., p. 366.
[6] O Céu e o Inferno. Parte II, cap. II. O Doutor Demeure. Trad.: J. Herculano Pires.
[7] Revista Espírita. Mar/1869. As árvores mal-assombradas da Ilha Maurício. F.E.B., 2007, 2.ª ed., p. 122.
[8] O Livro dos Espíritos, 154 a 162. O Céu e o Inferno, Parte II, cap. I: Le Passage.
[9] O Livro dos Espíritos. 136-a. Trad.: J. Herculano Pires.
[10] O Livro dos Espíritos. 155-a. Trad. J. Herculano Pires.
[11] O Céu e o Inferno. Parte I, cap. I, ns. 4, 5, 10 e 11. No francês: “points de contact”; “force d'adhérence”; “liens fluidiques”.
[12] O Livro dos Espíritos, 257. No original: “[...] Dans le corps, ces sensations sont localisées par les organes qui leur servent de canaux. Le corps détruit, les sensations sont générales. […] la douleur n'est pas localisée et qu'elle n'est pas produite par les agents extérieurs: c'est plutôt un souvenir qu'une réalité […] il en résultait une sorte de répercussion morale qui lui transmettait la sensation de ce qui se passait dans le corps. Répercussion n'est peut-être pas le mot, il pourrait faire croire à un effet trop matériel […] Le périsprit, dégagé du corps, éprouve la sensation; mais comme elle ne lui arrive plus par un canal limité, elle est générale. […] savons qu'il y a perception, sensation, audition, vision; que ces facultés sont des attributs de tout l'être, et non, comme chez l'homme, d'une partie de l'être […] Il n'en est pas de même de ceux dont le périsprit est plus dense; ceux-là perçoivent nos sons et nos odeurs, mais non pas par une partie limitée de leur individu, comme de leur vivant [...] inférieurs comme supérieurs, n'entendent et ne sentent que ce qu'ils veulent entendre ou sentir. Sans avoir des organes sensitifs, ils peuvent rendre à volonté leurs perceptions actives ou nulles [...]”.


(*) palestrante e escritor espírita.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

PESTALOZZI E KARDEC - QUEM É MESTRE DE QUEM?¹

Por Dora Incontri (*) A relação de Pestalozzi com seu discípulo Rivail não está documentada, provavelmente por mais uma das conspirações do silêncio que pesquisadores e historiadores impõem aos praticantes da heresia espírita ou espiritualista. Digo isto, porque há 13 volumes de cartas de Pestalozzi a amigos, familiares, discípulos, reis, aristocratas, intelectuais da Europa inteira. Há um 14º volume, recentemente publicado, que são cartas de amigos a Pestalozzi. Em nenhum deles há uma única carta de Pestalozzi a Rivail ou vice-versa. Pestalozzi sonhava implantar seu método na França, a ponto de ter tido uma entrevista com o próprio Napoleão Bonaparte, que aliás se mostrou insensível aos seus planos. Escreveu em 1826 um pequeno folheto sobre suas ideias em francês. Seria quase impossível que não trocasse sequer um bilhete com Rivail, que se assinava seu discípulo e se esforçava por divulgar seu método em Paris. Pestalozzi, com seu caráter emotivo e amoroso, não era de ...

OS FILHOS DE BEZERRA DE MENEZES

                              As biografias escritas sobre Bezerra de Menezes apresentam lacunas em relação a sua vida familiar. Em quase duas décadas de pesquisas, rastreando as pegadas luminosas desse que é, indubitavelmente, a maior expressão do Espiritismo no Brasil do século XIX, obtivemos alguns documentos que nos permitem esclarecer um pouco mais esse enigma. Mais recentemente, com a ajuda do amigo Chrysógno Bezerra de Menezes, parente do Médico dos Pobres residente no Rio de Janeiro, do pesquisador Jorge Damas Martins e, particularmente, da querida amiga Lúcia Bezerra, sobrinha-bisneta de Bezerra, residente em Fortaleza, conseguimos montar a maior parte desse intricado quebra-cabeças, cujas informações compartilhamos neste mês em que relembramos os 180 anos de seu nascimento.             Bezerra casou-se...

DIA DA ESPOSA DO PASTOR: PAUTA PARASITA GANHA FORÇA NO BRASIL

     Imagens da internet Por Ana Cláudia Laurindo O Dia da Esposa do Pastor tem como data própria o primeiro domingo de março. No contexto global se justifica como resultado do que chamam Igreja Perseguida, uma alusão aos missionários evangélicos que encontram resistência em países que já possuem suas tradições de fé, mas em nome da expansão evangélico/cristã estas igrejas insistem em se firmar.  No Brasil, a situação é bem distinta. Por aqui, o que fazia parte de uma narrativa e ação das próprias igrejas vai ocupando lugares em casas legislativas e ganhando sanções dentro do poder executivo, como o que aconteceu recentemente no estado do Pará. Um deputado do partido Republicanos e representante da bancada evangélica (algo que jamais deveria ser nominado com naturalidade, sendo o Brasil um país laico (ainda) propôs um projeto de lei que foi aprovado na Assembleia Legislativa e quando sancionado pelo governador Helder Barbalho, no início deste mês, se tornou a lei...

OS ESPÍRITAS E O CENSO DE 2022

  Por Jorge Luiz   O Desafio da Queda de Números e a Reticência Institucional do Espiritismo no Brasil Alguns espíritas têm ponderado sobre o encolhimento do número de declarados espíritas no Brasil, conforme o Censo de 2022, com abordagens diversas – desde análises francas até tentativas de minimizar o problema. O fato é que, até o momento, as federativas estaduais e a Federação Espírita Brasileira (FEB) não se manifestaram com o propósito de promover um amplo debate sobre o tema em conjunto com as casas espíritas. Essa ausência das federativas no debate não chega a ser surpreendente e é uma clara demonstração da dinâmica do movimento espírita brasileiro (MEB). As federativas, na realidade, tornaram-se instituições de relacionamento público-social do movimento espírita.

CONFLITOS E PROGRESSO

    Por Marcelo Henrique Os conflitos estão sediados em dois quadrantes da marcha progressiva (moral e intelectual), pois há seres que se destacam intelectualmente, tornando-se líderes de sociedades, mas não as conduzem com a elevação dos sentimentos. Então quando dados grupos são vencedores em dadas disputas, seu objetivo é o da aniquilação (física ou pela restrição de liberdades ou a expressão de pensamento) dos que se lhes opõem.

JUSTIÇA COM CHEIRO DE VINGANÇA

  Por Roberto Caldas Há contrastes tão aberrantes no comportamento humano e nas práticas aceitas pela sociedade, e se não aceitas pelo menos suportadas, que permitem se cogite o grau de lucidez com que se orquestram o avanço da inteligência e as pautas éticas e morais que movem as leis norteadoras da convivência social.  

O CERNE DA QUESTÃO DOS SOFRIMENTOS FUTUROS

      Por Wilson Garcia Com o advento da concepção da autonomia moral e livre-arbítrio dos indivíduos, a questão das dores e provas futuras encontra uma nova noção, de acordo com o que se convencionou chamar justiça divina. ***   Inicialmente. O pior das discussões sobre os fundamentos do Espiritismo se dá quando nos afastamos do ponto central ou, tão prejudicial quanto, sequer alcançamos esse ponto, ou seja, permanecemos na periferia dos fatos, casos e acontecimentos justificadores. As discussões costumam, normalmente e para mal dos pecados, se desviarem do foco e alcançar um estágio tal de distanciamento que fica impossível um retorno. Em grande parte das vezes, o acirramento dos ânimos se faz inevitável.

A FÉ COMO CONTRAVENÇÃO

  Por Jorge Luiz               Quem não já ouviu a expressão “fazer uma fezinha”? A expressão já faz parte do vocabulário do brasileiro em todos os rincões. A sua história é simbiótica à história do “jogo do bicho” que surgiu a partir de uma brincadeira criada em 1892, pelo barão João Batista Viana Drummond, fundador do zoológico do Rio de Janeiro. No início, o zoológico não era muito popular, então o jogo surgiu para incentivar as visitas e evitar que o estabelecimento fechasse as portas. O “incentivo” promovido pelo zoológico deu certo, mas não da maneira que o barão imaginava. Em 1894, já era possível comprar vários bilhetes – motivando o surgimento do bicheiro, que os vendia pela cidade. Assim, o sorteio virou jogo de azar. No ano seguinte, o jogo foi proibido, mas aí já tinha virado febre. Até hoje o “jogo do bicho” é ilegal e considerado contravenção penal.

O AUTO-DE-FÉ E A REENCARNAÇÃO DO BISPO DE BARCELONA¹ (REPOSTAGEM)

“Espíritas de todos os países! Não esqueçais esta data: 9 de outubro de 1861; será marcada nos fastos do Espiritismo. Que ela seja para vós um dia de festa, e não de luto, porque é a garantia de vosso próximo triunfo!”  (Allan Kardec)             Por Jorge Luiz                  Cento e sessenta e três anos passados do Auto-de-Fé de Barcelona, um dos últimos atos do Santo Ofício, na Espanha.             O episódio culminou com a apreensão e queima de 300 volumes e brochuras sobre o Espiritismo - enviados por Allan Kardec ao livreiro Maurice Lachâtre - por ordem do bispo de Barcelona, D. Antonio Parlau y Termens, que assim sentenciou: “A Igreja católica é universal, e os livros, sendo contrários à fé católica, o governo não pode consentir que eles vão perverter a moral e a religião de outros países.” ...

TRÍPLICE ASPECTO: "O TRIÂNGULO DE EMMANUEL"

                Um dos primeiros conceitos que o profitente à fé espírita aprende é o tríplice aspecto do Espiritismo – ciência, filosofia e religião.             Esse conceito não se irá encontrar em nenhuma obra da codificação espírita. O conceito, na realidade, foi ditado pelo Espírito Emannuel, psicografia de Francisco C. Xavier e está na obra Fonte de Paz, em uma mensagem intitulada Sublime Triângulo, que assim se inicia: