Já faz algum tempo, uma antiga
vizinha sem papas na língua, me vendo sempre às voltas com atividades na Casa
Espírita, um dia não resistiu e em meio a uma conversa acabou “soltando” que eu
era “muito carola!” Levando a coisa
na farra, tentei argumentar: – “Mas eu
sou espírita e não católica...” Ela aí não titubeou: – “Então é espiróla.”
O
pitoresco virou piada, mas trouxe à tona uma séria questão. Até onde nós,
espíritas, estaremos descambando para o igrejismo e a superficialidade?
Temos visto Grupos tão obcecados com
assiduidade e pontualidade, tão cheios de regras, critérios, exigências e uma
intolerância tal, que mais parecem a velha e inquisitorial igreja romana da
idade média que oficinas fraternas de estudo e vivência do Evangelho de Jesus.
Onde foi que perdemos o rumo da
fraternidade? Que paramentos invisíveis ainda nos fazem oscilar entre a
pseudo-superioridade dos sacerdotes e a submissão dos beatos?
Em um dos costumeiros papos
fraternos com meu saudoso amigo Palhano Jr., certa vez questionei: - Por que será que os espíritas se digladiam
tanto por cargos, até mesmo naqueles grupos minúsculos que ficam lá onde Judas
perdeu as botas?... Bem-humorado, como sempre, ele me respondeu com uma
risadinha marota: - “A briga é pelo poder
sobre as almas, minha cara. Muitos espíritas ainda se alimentam da autoridade
clerical que tinham, quando nas fileiras do catolicismo. O poder vicia.”
Para
esse autoritarismo rançoso, o que não faltam são defesas equivocadas. Afinal,
Emmanuel recomendou: “Disciplina,
disciplina, disciplina.” Foi o bastante para que instruções superiores,
aplicadas a um contexto específico, se tornassem o jargão justificador da
inflexibilidade fria que campeia em nosso meio e que vem transformando nossas
instituições - destinadas a serem escolas do amor - em verdadeiros quartéis de
controle e enquadramento. E quantos exageros em nome da disciplina...
Certa vez, uma palestrante
habitualmente pontual, chegou à nossa reunião pública em cima da hora. Estava
mortificada. Por mais que tentássemos deixá-la à vontade repetia sem parar que “a
espiritualidade tem horário a cumprir.” Naquela noite o seu desempenho,
obviamente, não foi dos melhores. Porém, é perfeitamente compreensível a reação
da companheira. Ocorre que se os dirigentes espirituais levam em conta que
estamos na matéria, sujeitos a limitações e imprevistos comuns à vida terrena,
os dirigentes encarnados, em grande maioria, não o fazem. Numa afirmação de
poder, até mesmo inconsciente, sobretudo com relação aos médiuns, insistem em generalizar,
e saem por aí a prodigalizar suspensões ou prescrições de
inumeráveis passes e palestras doutrinárias, até que o faltoso ou atrasadinho,
supostamente reequilibrado, mas no fundo, punido, possa então
reconquistar a permissão de voltar às atividades... Haja penitência!
Façamos o dever de casa. No Livro
dos Médiuns, cap. XXIX, top. 333, ao tratar das reuniões espíritas, o
codificador é muito claro: “Se bem que os
espíritos prefiram a regularidade, os verdadeiramente superiores não são
meticulosos a este ponto. A exigência de uma pontualidade rigorosa é um
sinal de inferioridade, como tudo o que é pueril.”
É
preocupante, também, a falta de naturalidade com que as pessoas tem se
comportado no ambiente espírita. Observa-se uma despersonalização e um formalismo
alarmantes, em lugar da camaradagem espontânea que deveria existir entre
irmãos. Não raro, rir e brincar inter-reuniões parece ser implícita ou
explicitamente proibido: - “Quebra a vibração.” Cada vez mais, os cumprimentos
espontâneos e afetivos têm dado lugar a frases feitas, piegas e que soam muito
falso. Na fala, como na escrita, temos substituído expressões carinhosas e
simples do cotidiano por uma linguagem impessoal, “santificada” e obsoleta,
incompatível com os novos tempos. Ah, as palavras ensaiadas... Os gestos
contidos... Ladainhas do passado, ainda tão presentes, a nos distrair de nós
mesmos...
Nas Casas Espíritas, dirigentes
preocupados apenas em dirigir e coordenadores tão somente concentrados
em coordenar, esquecem o essencial: AMAR. Casas se agigantam e
pessoas viram número, em ambientes tão impecáveis quanto frios. Alguém notou a
tristeza daquele companheiro ou a ausência daquele outro? Ocupados em crescer,
no quantitativo, ignoramos Kardec a recomendar grupos pequenos e o alerta do próprio
Chico, que já dizia: - “Em Casa que muito
cresce o amor desaparece.”
Perdidos
numa burocracia sem sentido, senhas e formulários vão aos poucos tomando o
lugar do coração e transformando nossos atendimentos fraternos em patética
mistura de clínica psicológica e confessionário, onde o indivíduo precisa
seguir à risca as etapas cronometradas do tratamento para obter “alta”
ou “absolvição.” Assim, desorientados orientadores, em tom grave
e superior, seguem dando receitas iguais para problemas diferentes. Alguém
sofreu uma perda e busca notícias do ente querido desencarnado? Que vá “baixar”
noutro Centro, porque nos mais ortodoxos ouvirá rispidamente que o telefone só
toca “de lá pra cá” e fim. A alegação é que a mediunidade não está a serviço de
problemas “domésticos” e sim de coisas mais sérias. Valei-me Chico Xavier!
Quanta saudade da mediunidade a serviço do amor, do consolo aos desesperados de
toda a sorte...
Nas reuniões públicas, companheiros
carrancudos às portas das cabines de passe chamam com voz cavernosa: – Os próximos! E aquele que está indo pela
primeira vez fica a imaginar que ritual terrível deve acontecer naquela salinha
escura onde todos entram cabisbaixos, como bois para o matadouro. Diretores
severos, após comoventes preces, olham por baixo dos óculos com olhar de
censura para a mãe de alguma criança que chora, ou pedem que se retire. Médiuns
coreografados sincronizam movimentos como se fossem clones uns dos outros.
Qualquer semelhança com farisaísmo, lamentavelmente, não será mera coincidência.
Na Evangelização, criança que chega
atrasada volta; Se falta muito é cortada; Mesmo aquela que mais precisa da
orientação e do pão. A mãe, senhora simplória assistida pelo Grupo e que muitas
vezes sequer tem o dinheiro da passagem, ouve um duro sermão de alguém que
ignora a sua difícil realidade. Normas são normas. Quem negligenciar a freqüência
dos filhos não tem direito a cesta básica. O tom é incisivo. Muitos dirão que é
necessário usar estratégias para evangelizar “os nossos irmãos que mais precisam”. Talvez tenham razão...
Parece que só os espíritas já não precisam mais do Evangelho...
Navegantes desatentos às ciladas da
superfície, não percebemos o risco de naufrágio iminente. Parecemos surdos à conclamação do Espírito de
Verdade: -“Espíritas! Amai-vos,
este o primeiro ensinamento” - E indiferentes à terna advertência de José, Espírito Protetor, a nos lembrar que “a indulgência atrai, acalma, reergue, ao
passo que o rigor desencoraja, afasta e irrita.” Até quando
continuaremos atraídos pelo canto da sereia?
Há que se ter humildade para
repensar nossas práticas doutrinárias, reconhecer equívocos, resgatar a
doutrina simples e libertária de Jesus. Há que se ter coragem para mudar, para
substituir a frieza dogmática que tem nos engessado pela convivência fraterna,
calorosa e solidária que nos identificará, de fato, como cristãos redivivos.
Espíritas ou “espirólas”... O que temos sido? O que realmente queremos
ser? Cada um se perceba e se responda.
Ainda há tempo.
*Joana Abranches é
Assistente Social, escritora e Presidente da Sociedade Espírita Amor
Fraterno Vitória/ES - Joanaabranches@gmail.com – amorefraterno@gmail.com
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