Por Jorge Luiz
A Ilusão do Apolitismo e a Inerência da Política
Há certo pedantismo de indivíduos que se autodenominam apolíticos como se isso fosse possível. Melhor autoafirmarem-se apartidários, considerando a impossibilidade de se ser apolítico. A questão que leva a esse mal entendido é que parte das pessoas discordam da forma de se fazer política, principalmente pelo fato instrumentalizado da corrupção, que nada tem do abrangente significado de política. A política partidária é considerada quando o indivíduo é filiado a alguma agremiação religiosa, ou a ela se vincula ideologicamente. Quanto ao ser apolítico, pensa-se ser aquele indiferente ou alheio à política, esquecendo-se de que a própria negação da política faz o indivíduo ser político.
A corrupção não é privilégio dos políticos. Encontrar-se-á no judiciário, nas Forças Armadas, no revendedor de combustível, no açougueiro, nas lideranças religiosas. Ela é sistêmica e tem sua gênese na dinâmica das relações instruídas e mediadas pela forma de reprodução capitalista. Isso tornou a política, na realidade, por natureza, profana; algo que habita o não sagrado.
Sagrado, Profano e a Dimensão Política do Cristianismo
Mírcea Eliade admite que para o homem religioso o espaço não é homogêneo: o espaço apresenta roturas, quebras; há porções de espaço qualitativamente diferentes das outras. Há, portanto, um espaço sagrado, e por consequência “forte”, significativo, e há outros espaços não sagrados, e por consequência sem estrutura nem consistência, em suma, amorfos ou profanos. O sagrado não se relaciona com o profano, Jesus sendo a excelência do sagrado, cordeiro de Deus que remiu os pecados dos indivíduos, não poderia ser político. Naturalmente, para muitos, comportar-se apolítico está em sintonia com o divino (Eliade, 2001). Importante notar que para o Catolicismo, seus próprios templos são uma ambiência sagrada, tanto que suas torres apontam para o céu lembrando a transcendência e a busca por Deus.
Destaque-se que essa profanidade tem aspecto ideológico e estratégico das classes dominantes, assim como há aparelhos repressivos do Estado, há também os aparelhos ideológicos de Estado, estudados por Louis Althusser. Esses aparelhos ideológicos são conceitos e crenças, valores e concepções que moldam a forma como as pessoas interpretam a realidade e se posicionam no mundo, obviamente, que formatam a subjetividade dos indivíduos no mundo, como se fossem naturais. Assim, a realização do reino de Deus ficou para os indesejados da sociedade, após a morte, enquanto os ricos se refestelam nababescamente com as riquezas produzidas pelos oprimidos, aqui na terra.
Com a introdução do pensamento filosófico de Jesus a respeito do amor a Deus acima de todas as coisas e ao próximo como a si mesmo, temos o mais seguro paradigma de transformação da sociedade e do seu desenvolvimento em uma linha ascensional que segue ao Infinito para a aquisição da perfeição, assim ensina o Espírito Viana de Carvalho (Franco, 1999). O convite de Jesus acerca do reino de Deus é eminentemente político, por ser efetivamente transformador da humanidade. Quando Jesus adverte que o reino de Deus está dentro de cada indivíduo, ele admite que a política é uma das potencialidades do Espírito. E os Espíritos nos esclarecem e fortalecem a compreensão ao afirmarem que os homens buscam a sociedade por instinto e devem todos concorrer para o progresso, ajudando-se mutuamente (KARDEC, 2000; questão nº. 767). Essa necessidade espírita fez Aristóteles, filósofo grego, definir o homem como animal político.
A definição aristotélica dialoga com a filosofia espírita quando os Espíritos assinalam que Deus fez o homem para viver em sociedade, atribuindo-lhe a palavra e todas as outras faculdades necessárias à vida de relação (Kardec, 2000; questão nº. 766). Essa natureza é que dará contorno à natureza da comunidade política aristotélica como aquela que será soberana dentre todas elas, lares, vilarejos, povoados, a partir de onde nasce a cidade.
Já na Lei de Liberdade, lê-se que todo indivíduo tem a obrigação de respeitar os direitos alheios, o que lhe tira o direito de pertencer a si mesmo, isso é um direito natural (Kardec, 2000; questão nº. 827). Assim, o indivíduo livre, partícipe de uma democracia, é um ser político, vive situações cotidianas como a ação individual (escolhas de consumo, participação em movimentos sociais, agremiações religiosas, clubes de recreação profissional etc.) e isso já é uma forma de fazer política, mesmo sem filiação partidária.
O Reino de Deus: Uma Sociedade Politicamente Estruturada
O que se conclui é que Jesus, ao falar sobre o reino de Deus, é baseado em imagem visual de casa, cidade ou comunidade, não permite dúvidas sobre aquilo que se tinha em mente: uma sociedade politicamente estruturada aqui na Terra. Um reino é noção inteiramente política. É sociedade na qual a estrutura política é monárquica, ou seja, é dirigida e governada por um rei. Nada daquilo que Jesus disse poderia nos levar a pensar que ele pudesse ter usado essa expressão em sentido não político (Nolan, 1987).
Dois pontos que necessitam ser ressaltados é quando Jesus afirma que o seu reino não é deste mundo e que os seus discípulos estão no mundo, mas não são do mundo. As passagens estão no evangelho de João – 18:36; 17:11-16 – e deixam claro que os valores do reino de Deus são diferentes de, e opostos a, aos valores daquele e deste mundo. Não há razão para se pensar que o reino vá flutuar no ar em algum lugar acima da Terra, ou que seja entidade abstrata sem qualquer estrutura social e política tangível (idem).
A clivagem do reino de Deus fundada e esperada de Jesus por nós é concebida como a exaltação aos pobres. Jesus deixa de lado todo aquele e este mundo de coração frio e estreito, ele se voltou para os simples. Uma vasta substituição de raça e classes aconteceria, e o reino de Deus é estruturado politicamente da seguinte forma:
a) para as crianças e para os que se parecem com elas;
b) para os desprezados deste mundo, vítimas da arrogância social, os homens bons e humildes;
c) para os heréticos e cismáticos, publicanos, samaritanos, pagãos de Tiro e Sidônia. (Renan, 1995).
O Reino de Deus e os Cristãos
Um vídeo que viralizou nas redes sociais, em 2024, é de um repórter que pergunta: “Por que vocês estão com a bandeira de Israel?”. Uma delas responde: “Porque somos cristãs, assim como Israel”. O repórter rebate: “Mas vocês sabem que Israel não é cristão, não é?”. E a mulher então responde: “Mas nos representa” …
A resposta dessa entrevistada é emblemática para se avaliar o posicionamento dos cristãos, inclusive espíritas nesses tempos, considerando que apenas 1,9% da população é israelense, equivalendo a 178 mil pessoas, aproximadamente. Não fica por aí, o uso da bandeira de Israel por brasileiros nessas manifestações parte de uma interpretação equivocada das Escrituras feita por pastores cujo engajamento político é mais preponderante que a observação das leis sagradas. Há uma confusão entre a Israel bíblica e a Israel histórica.
O universo cristão brasileiro se identifica, em sua maioria, com os valores do Antigo Testamento, do que realmente com o Novo Testamento. Com isso, há reflexos extremamente perniciosos na dinâmica das práticas dos que se afirmam cristãos, com expressões bizarras, principalmente no universo neopentecostal.
Já no cenário político, diante dessa realidade, líderes religiosos têm sido alçados ao parlamento brasileiro e demonstram um alheamento, quase sempre, refratário e declaradamente contrário às políticas públicas dos eleitos por Jesus que se configuraria o reino de Deus. E se votam nesses políticos.
Em 2006, Sam Harris escreveu uma carta aos cristãos dos Estados Unidos, que depois a publicaria em opúsculo com o título Carta a Uma Nação Cristã. Passados 19 anos, a carta se mostra atual para o cenário brasileiro, pois, nela, ele aponta uma cristandade no seu aspecto mais desagregador, destrutivo e retrógrado, as relações incestuosas com os extremistas de direita com suas ideias fascistoides. Critica os afagos dessa cristandade a Israel, apontando citações no Alcorão que Maomé aponta Jesus não ser divino. Cristandade que faz oposição ao aborto e apoia o genocídio que ocorre em Gaza, patrocinado pelo governo de Israel (Harris, 2006).
Onde estou?
Jesus definiu seu lado. Jesus interdita o acesso do rico ao reino de Deus, de forma inconteste (Mt., 19-16-19:24; Lc., 12:13-16:19. O reino não admite a propriedade privada (acumulação de bens terrenos) (*) (Mt., 19:16). O reino de Deus é uma exaltação aos pobres, mensagem de libertação. A caridade assistencialista acrítica tem sido praticada por muitos cristãos como se fosse o atendimento ao chamado de Jesus, nesse propósito. As intenções são louváveis, diz Oscar Wilde – embora mal aplicadas, atiram-se graves e compassivas, à tarefa de remediar os males que veem. Mas seus remédios não curam a doença: só fazem prolongá-la. De fato, seus remédios são parte da doença. A caridade cria uma legião de pecados (Wilde, 2003). Paulo Freire enriquece as reflexões de Wilde, quando adverte que ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho, os homens se libertam em comunhão. Continua Freire, somente quando os oprimidos descobrem, nitidamente, o opressor, e se engajam na luta organizada por sua libertação, começam a crer em si mesmos, superando, assim, sua “conivência” com o regime opressor. Se esta descoberta não pode ser feita em nível puramente intelectual, mas da ação, o que nos parece fundamental, é que esta não se cinja a mero ativismo, mas esteja associada a sério empenho de reflexão, para que seja práxis (Freire, 1970).
Imagine-se todas as iniciativas espíritas e não espíritas, revestidas desse espírito de libertação de consciências; que se pense sobre os desdobramentos acerca das consequências sociais e políticas para a superação das desigualdades, sem dúvidas, esses esforços seriam parturientes de esperanças para se reconstruir a sociedade em bases tais que se possa superar os estados de pobreza que assolam as sociedades.
A colaboração de Allan Kardec para esses ensejos afirma que o crítico não se deve limitar a dizer que tal coisa é boa ou má; é preciso que justifique sua opinião por uma demonstração clara e categórica, baseada sobre os princípios da arte ou da ciência a que pertence o objeto da crítica (Kardec, 2013).
O senso comum, ou subjetivação dos sujeitos, são ideias das classes dominantes em suas épocas históricas, como bem assinala Karl Marx. As ideias do reino de Deus vieram e continuam vigentes para abalar esse senso comum. Há aqueles que lutam parar manter esse senso comum, por considerar isso tradição, equívoco ou ignorância.
A mensagem de Jesus era e continua sendo anti-imperialista. Do ponto de vista dos romanos, a crucificação de Jesus humilhava e aterrorizava decisivamente os seus seguidores e outros galileus e judeus com esse método doloroso e vergonhoso de um rebelde ousado (Hosley, 2004).
Importante se entender que Jesus nunca fundou religião (cristianismo) nem igreja (cristã), suas atitudes foram sempre o exemplo do que seria o Reino entre os do seu tempo. Marcar presença semanal em qualquer templo religioso não é o suficiente para se estar com Jesus.
Jesus tem lado! Onde estou?
(*) a concepção moderna de propriedade privada surge com a ideologia do capital, portanto, divergente da ideia vigente na sociedade judaica. Em Israel, a terra pertencia a Deus. Esta convicção, no entanto, não dispensava os homens se organizarem. Passando do sistema tribal de nômades do deserto para o clã sedentário, proprietário de um quinhão de terreno.
Referências:
ELIADE, Mircea. O Sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes,1992.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
FRANCO, Divaldo. Atualidade do pensamento espírita. Salvador: Ceal, 1999.
HARRIS, San. Carta a uma nação cristã. São Paulo: Cia das Letras, 2006.
HORSLEY, Richard A. Jesus e o império. São Paulo: Paulus, 2004.
KARDEC, Allan. O Livro dos espíritos. São Paulo: Lake, 2000.
_____________. O que é o espiritismo. São Paulo: Lake, 2013.
NOLAN, Albert. Jesus antes do cristianismo. São Paulo: Paulinas, 1987.
WILDE, Oscar. A alma do homem sob o socialismo. Porto Alegre: L&PM, 2003.
RENAN, Ernst. Vida de Jesus. São Paulo: Martin Claret, 1995.
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COMENTÁRIO ELABORADO PELA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL - IA
ResponderExcluirO texto desmantela a ideia de "apoliticismo", argumentando que a política é inerente à existência humana, distinguindo-a da política partidária. O autor critica a redução da política à corrupção, que ele vê como um problema sistêmico do capitalismo, e não da política em si.
Em uma análise profunda, o artigo reinterpreta o cristianismo como intrinsecamente político, refutando a noção de que o sagrado é avesso ao profano. O "reino de Deus" de Jesus é apresentado como uma estrutura social e política concreta, baseada em valores de inclusão e libertação, especialmente para os marginalizados.
Uma crítica contundente é direcionada à identificação de parte do cristianismo brasileiro com o Antigo Testamento e com a política de Israel, o que, para o autor, distorce a mensagem original de Jesus. Ele alerta para a influência de líderes religiosos com agendas políticas, especialmente no neopentecostalismo, que resultam em práticas perniciosas e distantes dos ideais do reino.
O texto finaliza com um chamado à reflexão e ao posicionamento ativo, questionando "Onde estou?". Ele reafirma que Jesus "tem lado" – o dos pobres e oprimidos – e que a verdadeira caridade, inspirada em Paulo Freire e Oscar Wilde, é a que busca a libertação e a transformação social, não o mero assistencialismo. A mensagem de Jesus, portanto, é percebida como anti-imperialista e como uma força contínua para abalar o senso comum e reconstruir a sociedade sobre bases de equidade.
Mais um artigo importante e bem referenciado do Jorge. Todos somos seres políticos.
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