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SEM CUÍCA, SEM AGOGÔ, SEM TAMBORIM

 


            O canto ainda ressoa cadenciado pela batida que parecia saltar da terra, quando a noite permitia o descanso de longa jornada sob o sol causticante. O ritmo alegre das danças escondia as feridas do chicote e a humilhação doentia servida em bandeja de prata enquanto o alimento não passava de parca ração. O brasileiro é herdeiro dessa herança negra que trouxe ritmo aos pés e molejo aos quadris, num gesto mágico de capoeira. Essas qualidades desfilam nas ruas da cidade enquanto o samba-enredo invade as galerias e recantos.

            Pela tradição, anos após anos, a tribo do carnaval se abandona por vários dias. Infelizmente havia os praticantes de excessos, os quais puniram tanta vez com a própria vida, mas a maioria queria mesmo a alegria de alguns dias para descansar em alto estilo sob o embalo de muita música e tempo para relaxamento. Não agora, não nesse momento. De repente perdeu-se a vontade de rir e brincar. O mal que esvaziou as ruas não permite rima e apesar de ter ferido tantos corações não exibe traços de empatia com a dor humana.

            Dessa vez, com espaços limitados e fora das avenidas. Travestidos por máscaras que não representam exatamente uma fantasia. Apanhados num temporal que ceifa existências, sem uma certeza de quando haverá de passar. Aos que ainda julguem se tratar de um sonho,  não, não é um sonho. É sim algo além de um convite, trata-se de uma imposição. Enquanto os homens e as mulheres da Ciência descobrem os meios de solução, há com que se ocupar além de chorar, com justiça, aos queridos que se foram. Enfim temos um desafio coletivo diante de um desafiante que precisa de um transporte humano para alcançar outros humanos, os quais correspondem com freqüência às pessoas que fazem parte da rede mais próxima de afetos.

            Obrigatório ser responsável por si e pelo outro. Desejável que se mantenha a serenidade, no limite do possível. Hora de estimular o otimismo. Momento de olhar para o que se sofre logo ao lado. Circunstância para analisar a vida com a complexidade que lhe cabe, sem concessões para flertes com teorias que afastem da realidade ou banalizem o sofrimento do outro. Oportunidade para fazer parte de uma nova grande vitória da humanidade, que é exatamente o que vai acontecer, mais cedo ou mais tarde. Lembrar-se que na simbólica cronologia divina a raça humana foi a última a ser codificada e por isso mais apta a sobreviver, porque é assim que Deus terá demonstrado  querer.

            Noutros tempos futuros, quando alguns amigos referirem entre si, por quantos carnavais se conhecem, esse carnaval de agora, absolutamente silencioso -sem cuíca, sem agogô, sem tamborim - estará presente, não exatamente para ser lamentado, senão para ser festejado qual ocorre em toda fratura que consolidou e em toda lição dolorosa depois de aprendida.

            Abramos espaço para o carnaval da reflexão. O carnaval da responsabilidade. O carnaval do planejamento. O carnaval da transformação. O carnaval da empatia. O carnaval de ficar em si, na busca de alegrias interiores. O carnaval de lavar as mãos e manter o isolamento. O carnaval que prepare o resto de nossas vidas. O carnaval que abençoe a todos os mais de 230 milhões de brasileiros, pelos quais precisamos vibrar e nos manter vivos.

Comentários

  1. Toda vez que penso no Carnaval, penso nas famílias e nos trabalhadores que deixaram de ganhar sua renda, fora as cidades que viviam do turismo, e arracadavam bastante nessa época.

    Pode ser uma revisão de valores, mas não sei se as cidades e as pessoas sobreviverão sem alguma forma de auxílio financeiro como compensação.

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  2. O Brasil há muito já voltou a bater o recorde dos milhões abaixo da linha da pobreza, cuja queda de renda por fechamento do carnaval (o que acontece por absoluta necessidade sanitária) é apenas um detalhe. Auxílio Emergencial é essencial, com valores que, de fato permitam às pessoas se alimentarem e pagarem suas contas. Dificilmente as bases neoliberais do capitalismo virão contemplar essa necessidade, o que vai empurrar o país para a maior de suas depressões sociais em todos os tempos. Roberto Caldas

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