Pular para o conteúdo principal

RITO DE PASSAGEM

 


          Concorda-se que o tempo é um só. Aceita-se que após a noite vem um novo dia seguido por outra noite, sem solução de continuidade. Por outro lado, o calendário que rege a periodicidade do tempo, em sendo consequência dos movimentos da Terra em seu eixo e em torno do Sol, gera uma transição capaz de auxiliar muito além do que se chama simplesmente de convenção da passagem dos anos. Findar e iniciar um período tem direta utilidade na reordenação mental que torna possível avaliar planos e alinhar novos projetos.

            Destacado como o campo de plantio, o tempo não tem a propriedade de transformar sem a atitude humana. Daí a diferença entre o velho e o novo é mera noção de tempo, pois o que é novo naturalmente se torna velho, o que difere do ser-se renovado ou obsoleto, condições que exigem labuta e iniciativa. Comete-se equívocos nesses conceitos. Muitos escolhem o novo só por ser novidade em detrimento ao antigo pela presunção de ser ultrapassado. Sucede que o antigo que se renova é o que arrazoa o avanço da evolução social e intelectual. Servindo a esse propósito de continuidade é que Isaac Newton em 1675 terá tornado célebre essa sentença, “se eu vi mais longe, foi por estar sobre ombros de gigantes”, sugerindo que o progresso resulta da história acrescentada de prismas, então, desconhecidos.

            Quando se vislumbra o fim de 2020, com todos os seus fatos inesquecíveis, e se especula o início de 2021, impossível se ignore a herança a ser carregada. A noite de 31/12/20 não foi bafejada de magia para entregar ao dia 01/01/21 uma manhã livre de todas as injunções da sua antecessora. Não haverá magia que traga mudanças nesse particular. O que não impede de alçar-se desejos de melhores dias. Talvez o ano que começa seja aquele que mais implicará em reforço à visão aos cuidados coletivos. E, para o bem ou para o mal, os cuidados coletivos não se concretizarão se os elos individuais da corrente desistirem da dedicação que lhes cabe, numa renúncia covarde e intencional diante da batalha. Quanto mais representativos sociais sejam esses elos, mais graves as consequências para o todo, o que implica em multiplicação de seguidores abandonando suas posições responsáveis.

            Cada dia que passa, maior a capacidade de liberdade adquirida pelas pessoas. Tal aquisição impõe deveres com a sociedade. Allan Kardec investigou essa questão (LE – q. 826): “Qual a condição em que o homem pudesse gozar de liberdade absoluta? – A do eremita no  deserto. Desde que haja dois homens juntos, há direitos a respeitar e não terão eles, portanto, liberdade absoluta”. Na passagem de 2020/2021 essa questão deve calar fundo nas consciências, enquanto ampliamos a visão para momentos futuros que voltarão a permitir que abraços e convivências possam prestigiar os afetos conquistados.

            Nesses dias atuais, tratar de si em detrimento da saúde do ambiente e dos outros que caminham ao lado, é lamentável, pois pela lei de ação e reação toda poluição haverá de retornar a quem a criou. O ano 2021 tem um longo curso. O mundo, representado pela sua população, tem ampla capacidade de fazê-lo o melhor de todos os tempos, deixando apenas na História o ano 2020. O rito de passagem não é mudar de ano, sim uma troca da pessoa que fomos por aquela que almejamos ser. Fica a torcida coletiva de dias melhores alimentados pelas dores de muitas perdas e por isso mesmo mais meritórios. Feliz 2021.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

PESTALOZZI E KARDEC - QUEM É MESTRE DE QUEM?¹

Por Dora Incontri (*) A relação de Pestalozzi com seu discípulo Rivail não está documentada, provavelmente por mais uma das conspirações do silêncio que pesquisadores e historiadores impõem aos praticantes da heresia espírita ou espiritualista. Digo isto, porque há 13 volumes de cartas de Pestalozzi a amigos, familiares, discípulos, reis, aristocratas, intelectuais da Europa inteira. Há um 14º volume, recentemente publicado, que são cartas de amigos a Pestalozzi. Em nenhum deles há uma única carta de Pestalozzi a Rivail ou vice-versa. Pestalozzi sonhava implantar seu método na França, a ponto de ter tido uma entrevista com o próprio Napoleão Bonaparte, que aliás se mostrou insensível aos seus planos. Escreveu em 1826 um pequeno folheto sobre suas ideias em francês. Seria quase impossível que não trocasse sequer um bilhete com Rivail, que se assinava seu discípulo e se esforçava por divulgar seu método em Paris. Pestalozzi, com seu caráter emotivo e amoroso, não era de ...

OS FILHOS DE BEZERRA DE MENEZES

                              As biografias escritas sobre Bezerra de Menezes apresentam lacunas em relação a sua vida familiar. Em quase duas décadas de pesquisas, rastreando as pegadas luminosas desse que é, indubitavelmente, a maior expressão do Espiritismo no Brasil do século XIX, obtivemos alguns documentos que nos permitem esclarecer um pouco mais esse enigma. Mais recentemente, com a ajuda do amigo Chrysógno Bezerra de Menezes, parente do Médico dos Pobres residente no Rio de Janeiro, do pesquisador Jorge Damas Martins e, particularmente, da querida amiga Lúcia Bezerra, sobrinha-bisneta de Bezerra, residente em Fortaleza, conseguimos montar a maior parte desse intricado quebra-cabeças, cujas informações compartilhamos neste mês em que relembramos os 180 anos de seu nascimento.             Bezerra casou-se...

09.10 - O AUTO-DE-FÉ E A REENCARNAÇÃO DO BISPO DE BARCELONA¹ (REPOSTAGEM)

            Por Jorge Luiz     “Espíritas de todos os países! Não esqueçais esta data: 9 de outubro de 1861; será marcada nos fastos do Espiritismo. Que ela seja para vós um dia de festa, e não de luto, porque é a garantia de vosso próximo triunfo!”  (Allan Kardec)                    Cento e sessenta e quatro anos passados do Auto-de-Fé de Barcelona, um dos últimos atos do Santo Ofício, na Espanha.             O episódio culminou com a apreensão e queima de 300 volumes e brochuras sobre o Espiritismo - enviados por Allan Kardec ao livreiro Maurice Lachâtre - por ordem do bispo de Barcelona, D. Antonio Parlau y Termens, que assim sentenciou: “A Igreja católica é universal, e os livros, sendo contrários à fé católica, o governo não pode consentir que eles vão perverter a moral e a religião de outr...

A CULPA É DA JUVENTUDE?

    Por Ana Cláudia Laurindo Para os jovens deste tempo as expectativas de sucesso individual são consideradas remotas, mas não são para todos os jovens. A camada privilegiada segue assessorada por benefícios familiares, de nome, de casta, de herança política mantenedora de antigos ricos e geradora de novos ricos, no Brasil.

TRÍPLICE ASPECTO: "O TRIÂNGULO DE EMMANUEL"

                Um dos primeiros conceitos que o profitente à fé espírita aprende é o tríplice aspecto do Espiritismo – ciência, filosofia e religião.             Esse conceito não se irá encontrar em nenhuma obra da codificação espírita. O conceito, na realidade, foi ditado pelo Espírito Emannuel, psicografia de Francisco C. Xavier e está na obra Fonte de Paz, em uma mensagem intitulada Sublime Triângulo, que assim se inicia:

O MOVIMENTO ESPÍRITA MUNDIAL É HOJE MAIS AMPLO E COMPLEXO, MAS NÃO É UM MUNDO CAÓTICO DE UMA DOUTRINA DESPEDAÇADA*

    Por Wilson Garcia Vivemos, sem dúvida, a fase do aperfeiçoamento do Espiritismo. Após sua aurora no século XIX e do esforço de sistematização realizado por Allan Kardec, coube às gerações seguintes não apenas preservar a herança recebida, mas também ampliá-la, revendo equívocos e incorporando novos horizontes de reflexão. Nosso tempo é marcado pela aceleração do conhecimento humano e pela expansão dos meios de comunicação. Nesse cenário, o Espiritismo encontra uma dupla tarefa: de um lado, retornar às fontes genuínas do pensamento kardequiano, revendo interpretações imprecisas e sedimentações religiosas que se afastaram de seu caráter filosófico-científico; de outro, abrir-se à interlocução com as descobertas contemporâneas da ciência e com os debates atuais da filosofia e da espiritualidade, como o fez com as fontes que geraram as obras clássicas do espiritismo, no pós-Kardec.

ALLAN KARDEC E A DOUTRINA ESPÍRITA

  Por Doris Gandres Deolindo Amorim, ilustre espírita, profundo estudioso e divulgador da Codificação Espírita, fundador do Instituto de Cultura Espírita do Brasil, em dado momento, em seu livro Allan Kardec (1), pergunta qual o objetivo do estudo de uma biografia do codificador, ao que responde: “Naturalmente um objetivo didático: tirar a lição de que necessitamos aprender com ele, através de sua vida e de sua obra, aplicando essa lição às diversas circunstâncias da vida”.

PRECE DO EDUCADOR

Por Dora Incontri (*) Senhor, Que eu possa me debruçar sobre cada criança, e sobre cada jovem, com a reverência que deve animar minha alma diante de toda criatura Tua! Que eu respeite em cada ser humano de que me aproximar, o sagrado direito de ele próprio construir seu ser e escolher seu pensar! Que eu não deseje me apoderar do espírito de ninguém, imprimindo-lhe meus caprichos e meus desejos pessoais, nem exigindo qualquer recompensa por aquilo que devo lhe dar de alma para alma!

PRÓXIMOS E DISTANTES

  Por Marcelo Henrique     Pense no trabalho que você realiza na Instituição Espírita com a qual mantém laços de afinidade. Recorde todos aqueles momentos em que, desinteressadamente, você deixou seus afazeres particulares, para realizar algo em prol dos outros – e, consequentemente, para si mesmo. Compute todas aquelas horas que você privou seus familiares e amigos mais diletos da convivência com você, por causa desta ou daquela atividade no Centro. Ainda assim, rememore quantas vezes você deixou seu bairro, sua cidade, e até seu estado ou país, para realizar alguma atividade espírita, a bem do ideal que abraçaste... Pois bem, foram vários os momentos de serviço, na messe do Senhor, não é mesmo? Quanta alegria experimentada, quanta gente nova que você conheceu, quantos “amigos” você cativou, não é assim?

JESUS E A QUESTÃO SOCIAL

              Por Jorge Luiz                       A Pobreza como Questão Social Para Hanna Arendt, filósofa alemã, uma das mais influentes do século XXI, aquilo que se convencionou chamar no século XVII de questão social, é um eufemismo para aquilo que seria mais fácil e compreensível se denominar de pobreza. A pobreza, para ela, é mais do que privação, é um estado de carência constante e miséria aguda cuja ignomínia consiste em sua força desumanizadora; a pobreza é sórdida porque coloca os homens sob o ditame absoluto de seus corpos, isto é, sob o ditame absoluto da necessidade que todos os homens conhecem pela mais íntima experiência e fora de qualquer especulação (Arendt, 1963).              A pobreza é uma das principais contradições do capitalismo e tem a sua origem na exploração do trabalho e na acumulação do capital.