domingo, 8 de abril de 2018

KARDEC ERA KARDECISTA?


        
           O termo kardecismo não consta no vocabulário espírita. Na realidade, o termo surge de um recorte de estudos socioantropológicos que paulatinamente vulgarizou-se no Brasil para definir os seguidores da doutrina codificada por Allan Kardec. O kardecismo é um constructo do Espiritismo no Brasil.
          No entanto, na Revista Espírita, outubro de 1865, há uma comunicação que Kardec intitula “Partida de um adversário do Espiritismo para o Mundo dos Espíritos”, onde o Espírito adverte:

“Já se operam divisões entre vós. Existem duas grandes seitas entre os espíritas: os espiritualistas da escola americana e os espíritas da escola francesa. Mas consideremos apenas esta última. É una? Não. Eis, de um lado, os puristas ou kardecistas, (...)”
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          O professor Rivail se utilizou de pseudônimo – Allan Kardec – de uma das suas encarnações, na Gália antiga, como sacerdote druida, que lhe foi informado por um Espírito familiar de nome Zéfiro, para validar as obras da codificação espírita. Sempre afirmando que o Espiritismo não era obra dele, mas dos Espíritos, Rivail se fez anônimo para que a obra se tornasse grande.

          Kardec usou de todo o seu desvelo, como ele mesmo afirma em Obras Póstumas – Projeto 1868, ao destacar que o maior obstáculo capaz de retardar a propagação da Doutrina seria a falta de unidade. Ele afirma:

“O único meio de evitá-la, senão quanto ao presente, pelo menos quanto ao futuro, é formulá-la em todas as suas partes e até nos mais mínimos detalhes, com tanta precisão e clareza, que impossível se torne qualquer interpretação divergente.”

Na continuação ele desenvolve considerações acerca do desvirtuamento dos ensinamentos de Jesus.
          Na verdade, as ideias de Kardec sobre a dinâmica da difusão do Espiritismo nunca estiveram como prioridade na agenda das lideranças espíritas brasileiras.
          Por volta do ano de 1860, a bagagem dos viajantes e imigrantes que vinham da França para o Brasil passa a ter um item necessário em suas bagagens: O Livro dos Espíritos. Casimir Lietaud foi um personagem determinante para a disseminação das ideias espíritas no Rio de Janeiro e também foi o autor da primeira obra espírita editada no Brasil - Os tempos são chegados -, na língua francesa.
          A partir daí, o Espiritismo irá enfrentar no Brasil as principais correntes de ideias aqui dominantes e também da Europa: a) uma “cientificista”, fascinada com a leitura de manuais de positivismo, evolucionismo e darwinismo social; b) outra “liberal”, associada à afirmação do princípio de liberdade humana e das bandeiras políticas do republicanismo e do abolicionismo; c) e outra “conservadora”, dominada fundamentalmente pelo pensamento católico. Não se pode esquecer também a influência indígena e africana.
          Por força dessas correntes, os prosélitos espíritas vão compondo relações de acordo com suas tendências ideológica. Os maçons espíritas vão se agregar com as causas abolicionistas e republicanas (Fourierismo); dialogam com a “ciência” dos modernos esculápios (Mesmerismo e Homeopatia); e os que se contrapunham às doutrinas e instituições católicas.
          Vê-se, pois, que o ideal espírita vai absorvendo pensares diversos e fragmentando-se dentro desse caldo de cultura, configurando-se através de um “diálogo sincrético.” A esse respeito Marshal Sallins, em sua obra Ilhas de História, assegura:

“(...) Agindo a partir de perspectivas diferentes e com poderes sociais diversos para a objetivação de suas interpretações, as pessoas chegam a diferentes conclusões e as sociedades elaboram os consensos, cada qual a sua maneira. A comunicação social é um risco (...). E os efeitos desses riscos podem ser inovações radicais. (...).”

          Emerson Giumbelili, em sua prestigiadíssima obra O Cuidado dos Mortos, 2º lugar no Prêmio Arquivo Nacional de 1995, meticuloso trabalho da “História da Condenação e Legitimação do Espiritismo” no Brasil, assim sentencia:

“Não parto, assim, das obras de Kardec e sim da leitura que delas fazem seus discípulos no Brasil (...). Não se trata, portanto, de usar Kardec contra seus discípulos (ou vice-versa), mas de percebê-lo em sua imanência a um discurso que se conforma segundo uma série de outras determinações. Nem se trata, por outro lado, de afirmar a existência de uma homogeneidade doutrinária e ritual entre os vários grupos existentes nesse período. A diversidade de práticas e de interpretações filiadas ao Espiritismo era apontada pelos próprios adeptos.”
         
          A priori, se observa que muitos estudiosos, não espíritas, acerca do Espiritismo no Brasil comungam com a mesma constatação de Giumbelli.
          Com essa fragmentação o Espiritismo vai construindo a sua própria identidade no Brasil, distanciando-se dos anseios de Allan Kardec.
          Constata-se nesses estudos que alguns espíritas defendiam o estudo apenas de O Livro dos Espíritos, encarando-o apenas como ciência. Os estudiosos das demais obras de Kardec eram reconhecidos como kardecistas.           Os espíritas científicos privilegiavam a parte experimental – a dos fenômenos físicos. Os espíritas puros, só aceitavam a ciência e a doutrina filosófica, recusando o seu aspecto religioso. E a corrente chamada mística, embora reconhecesse toda a obra de Kardec, considerava fundamental a leitura atenta de O Evangelho Segundo o Espiritismo. Surgem também os roustainguistas, que priorizavam a obra Os Quatro Evangelhos, de J. B. Roustaing, e que futuramente vão figurar como estudo obrigatório pela Federação Espírita Brasileira.
          Um cisma se estabeleceu: os espíritas científicos versus os espíritas místicos ou religiosos, com o objetivo, e não poderia de ser diferente, de assegurarem a primazia do discurso no seio do movimento espírita crescente.
          O que se vê a partir daí foram as sucessivas dissidências internas e a formação de novos grupos – o que se perpetua até hoje -, na maioria das vezes com pouco e nenhum conhecimento da doutrina e do pensamento de Allan Kardec, possibilitando um movimento espírita difuso e vulnerável a práticas principalmente dos neófitos que migram de outras correntes religiosas.
Em 1949 a Federação Espírita Brasileira lança o Pacto Áureo, com o propósito de estimular a unificação da família espírita. Dos seus desdobramentos surge, em 1950, a Caravana da Fraternidade, liderada por Leopoldo Machado, que empreende viagem aos estados do Norte e Nordeste, com o propósito de se obter apoio para o sucesso do referido pacto.
Em um olhar sobre o movimento espírita brasileiro a partir do cisma mencionado prevaleceu o fundamento religioso, nascendo deste a organização de centros espíritas em forma de igrejas. Resultado: institucionalismo, profissionalismo religioso, missionarismo, partidarismo, personalismo.
Indiscutivelmente é o que se conclui, quando se fundamenta qualquer tipo de conhecimento dificilmente o autor terá controle de como os seus seguidores irão tratá-los. Vê-se, no entanto, que Kardec preveniu os adeptos do Espiritismo desse risco.
Assim:
Cristo não é cristão.
Marx não é marxista.
Kardec não é kardecista.

E o périplo continua!


Referências
ARRIBAS, Célia da G. Afinal, espiritismo é religião?. São Paulo: Alameda, 2010.
DAMÁZIO, Sylvia F. Da Elite ao Povo – advento e expansão do Espiritismo no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 1994.
GIUMBELLI, Emerson. O cuidado dos mortos – uma história da condenação e legitimação do espiritismo. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995.
KARDEC, Allan. Revista espírita 1865. Brasília. FEB. 2004;
MARSHAL, Salim. Ilhas de história. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.


                                 

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